Eis um pequeno excerto de um texto filosófico:
“O homem é homem só pela linguagem. Unicamente
pela linguagem chega o homem a tornar-se consciente do seu mundo. A
palavra não faz da realidade o nosso mundo. A palavra caracteriza o seu
modo de existência. Com as palavras, o homem vincula-se às coisas, (…) mas
também se distancia delas (…) e atribui-lhes significação” E. Cassirer
Como se faz um comentário?
Há muitas técnicas possíveis para estruturar
um “comentário de texto”. Na disciplina de Português é usual serem
estudadas várias dessas técnicas. Em filosofia, tal técnica tem enorme
importância e uma vez que não as vamos estudar todas, optamos por uma adaptação
daquela que é sugerida por Jacqueline Russ, no livro “Les méthodes en
philosophie”:
1. Tema abordado no texto a
comentar
2. Problema filosófico a que o
autor procura responder
3. Posição do autor (tese) sobre
esse problema
4. Justificações (argumentos)
apresentadas no texto para defender essa posição
5. Explicitação dos conceitos usados pelo
autor (implica recorrer aos conhecimentos estudados)
6. Eventuais problemas, dúvidas ou objecções
que a posição do autor levante (opinião pessoal do aluno, racionalmente
fundamentada)
Assim, no caso do texto presente nesta
questão, poderíamos elaborar um comentário obedecendo a esta estrutura:
1. O excerto apresentado
refere-se à importância antropológica da linguagem.
2 . O autor depara-se com um problema
filosófico fundamental, que é o de saber o que é o Homem e qual a importância
da linguagem na sua definição.
3. Segundo o autor, o Homem só é Homem
pela linguagem, pois
4. (i) é a linguagem que caracteriza o seu
modo de ser,
(ii) é pela linguagem que o Homem se
torna consciente do seu próprio mundo
(iii) é a linguagem que permite ao
Homem um distanciamento face ao mundo, atribuindo-lhe significação.
5. Esta palavras do autor
significam que
(i) só o Homem possui uma linguagem deste tipo
– uma linguagem simbólica, que lhe permite a referência a objectos ausentes e
não materializáveis: o animal não possui essa capacidade de referência à
realidade, pelo que a linguagem é o traço distintivo entre o Homem e o animal.
Por outro lado,
(ii) esse tipo de linguagem a que o
ser humano tem acesso permite-lhe perceber as causas e as consequências dos
seus actos: o Homem tem consciência de si mesmo, tem, consciência do que faz –
porque faz e para que faz. Ao animal, pelo carácter concreto da sua linguagem,
essa tomada de consciência é totalmente inacessível, pois só pode referir-se a
situações presentes: nenhum animal reflecte sobre o passado ou projecta o
futuro, coisa que o ser humano é capaz de fazer. Em último lugar,
(iii) há que referir que é
através da linguagem que, pelo poder da simbolização, o Homem se afasta da
realidade, no sentido em que não precisa de ter a realidade a que se refere
presente perante os seus olhos, pois o carácter abstracto e simbólico da sua
linguagem permite a construção de um conhecimento teórico e não meramente
prático sobre a realidade: o ser humano constrói diversas formas de
conhecimento sobre a realidade, apoiando-se na linguagem como estrutura de um
discurso racional ou afectivo sobre o mundo que o rodeia.
6. Pessoalmente, a)
concordo… / b) não concordo…
a) … concordo com o autor pois, como
já foi referido na resposta anterior, existem diversos traços distintivos entre
a linguagem humana e a linguagem animal, pelo que a linguagem será,
seguramente, uma forma possível de designar o que é o Homem, pois trata-se de
uma capacidade especificamente humana. Repare-se, por exemplo, que das várias
funções inerentes à linguagem, os animais são incapazes de possuírem uma função
metalinguística, isto é, a referência linguística ao próprio código: esse é um
território exclusivamente humano. Ainda assim, podem surgir algumas
dúvidas/interrogações/problemas a que este excerto não responde, tais como: se
descobrirmos que essa distinção linguística não é tão evidente, teremos de
mudar a nossa própria concepção do que é o ser humano? Se a capacidade simbólica
for exclusiva do ser humano, que reacção teremos perante um ser humano (por
exemplo, um microcefálico) que não possui essa capacidade? Essas são questões a
que o texto não permite responder.
b) … não concordo com o autor, pois nem sempre a linguagem simbólica é
exclusiva do ser humano: estudos com chimpanzés vieram levantar a questão de
saber se alguns animais, nomeadamente os primatas superiores, poderão (ou não)
aprender em contacto com os humanos a utilizar uma linguagem gestual, dado que
não possuem cordas vocais semelhantes às humanas. A ser assim, a linguagem
deixaria de ter o papel fulcral na distinção Homem/animal, deitando por
terra a opinião do autor.
Professora de Filosofia Isabel Nunes de Sousa ( Grupo de Filosofia da Escola Secundária Rainha D. Amélia)
Esclareço que o autor deste texto sou eu próprio. Foi publicado originalmente em 2004 e republicado em 2008 neste site: http://www.milfolhas.net/como-fazer-um-comentario-de-texto-em-filosofia/
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