quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Memória e civilização -O Holocausto

É a narrativa mais difícil de explicar. De certo modo é inexplicável, pois pretende compreender o impossível. Um impossível que nos remete a nós todos para a dimensão não humana, a prática de qualquer coisa que não nos torna sequer criaturas de Deus. Acreditámos muitas vezes em caminhos redentores de magia - o conhecimento e a cultura para nos resgatar de uma dimensão de animalidade. Caminho errado e sem respostas. Acreditámos que o bom senso reuniria todos os jovens corações pelo bem, pelo aceitável. Outro erro. 

Inspirámo-nos em velhos manuais de História, de Economia, de Cultura e Civilização para explicar este mal absoluto do espírito convencidos que há sempre uma racionalidade em cada gesto. Outro erro. Inspirámo-nos em velhas crenças que a maldade só era servida por figuras de segundo plano e votados ao insucesso.Outro erro. O mal pode ser servido por génios. E como se transformam pessoas de bem em condutoras de uma religião de morte? Cultura, civilização, pensamento, onde se distinguem quando são construção do saber e ideologia, a propaganda do poder absoluto sobre tudo, incluindo a vida?

Na total incapacidade para explicar o inexplicável, a indiferença de tantos para com o sofrimento, incluindo os que se dedicavam ao estudo de um Homem e de uma Humanidade sem rosto, um filme para ver essa raridade que foi o compromisso para com a vida no interior da Alemanha nazi. Foi uma das atividades hoje em destaque na Biblioteca com alunos do 7º ano. Justamente, A menina que roubava livros. Um filme sobre a coragem, a esperança de renovar a vida e o papel dos livros para iluminar a vida. O trail do filme, baseado num livro que vale a pena descobrir.

Luís Campos (Biblioteca)

sábado, 23 de janeiro de 2016

Para ires lendo... e pensando...(III)

"Ainda que os Estados observassem perfeitamente os pactos que celebram entre si, continuaria a ser lamentável que o uso de tudo ratificar por meio de um juramento religioso tenha entrado nos costumes - como se dois povos separados por um breve espaço, somente por uma colina ou por um rio, não estivessem unidos por laços sociais assentando na própria natureza - porque esta prática faz com que os homens acreditem ter nascido para serem adversários ou inimigos, e que têm o dever de trabalharem para a sua recíproca perda, a menos que que os tratados os impeçam. (...) Pelo contrário, ninguém deveria ser considerado inimigo, a menos que tivesse sido causa de um dano real. A comunidade de natureza é o melhor dos tratados e os homens estão mais íntima e fortemente unidos pela vontade de se fazerem reciprocamente o bem do que por pactos, mais vinculados pelo coração do que pelas palavras."

Eduardo Galeano definiu Utopia como aquilo a que nunca chegaremos, mas a energia que nos fará aproximar de um objetivo, o que nos fará andar. A sugestão de uma sociedade que possa cumprir a felicidade humana, ideia de Utopia de Thomas More foi imaginada igualmente por outros. Platão na República, as palavras de Savaranola ou de Saint Just já o tinham proposto. Tudo histórias que caminharam para o terror. George Orwell, Aldous Huxley ou Ray Bradbury deram conta desse inferno construído a partir de ideias de sonhos que foram essencialmente distopias. As Utopias naquilo que formalizaram nunca conseguiram atender às necessidades do humano. 

Thomas More nunca definiu um caminho, mas propunha sim uma necessidade de lutar pacificamente pela dignidade humana. Thomas More não definiu um modelo a impor, mas a necessidade de criar um caminho livre e aceite pela comunidade. A repartição da riqueza e do esforço conduz Thomas More para um sentido crítico de liberdade. Tal como em Elogio da Loucura de Erasmo, Thomas More critica os costumes, não no sentido de individualizar figuras, mas a de pedagogicamente aconselhar possibilidades. Se Erasmo colocou a loucura a denunciar a pobreza humana, Thomas More evidenciou no funcionamento das instituições as atitudes que importava analisar. 


Utopia de Thomas More é um livro, cuja publicação faz este ano quinhentos anos. Um livro que conduz ao valor do individual que nos continua a faltar. Thomas More acreditava na liberdade como ferramenta crítica de evolução social e política, mas desejava-a mais do que sabia ela ser possível. Mesmo tendo um lugar importante na corte de Henrique VIII, o arcebispo de Cantuária e lord chanceler do rei não escapou a um fim triste. Thomas More sentiu essa incapacidade de ver a sociedade do Renascimento a não ser mais do que o próprio Erasmo escrevera: "Os reis fazem a guerra, os padres zelam pelo aumento da sua fortuna, os teólogos inventam silogismos, os monges deambulam pelo mundo, os comuns causam desordens, Erasmo escreve colóquios."

Thomas More morreu em 6 de julho de 1535 num sinal de que o Renascimento também fazia perder homens nobres. Um século depois as características originais do Renascimento estavam amplamente distorcidos pelo dinheiro e poder dos homens ricos. O renascimento das cidades italianas foi como na Grécia do século V a.C a procura de uma glória em cada cidade, o orgulho cívico pela arte produzida. A liberdade e a evolução social foram outra coisa. A Renascença tinha implicado um progresso, mais no sentido das suas possibilidades, do que em faixas generalizadas da população. 

Luís Campos (Biblioteca)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O mundo de Homero

"Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:
Não digas nada. Não penses agora. Não faças perguntas.
Assim actuam os deuses, que o Olimpo detêm". (Homero, Odisseia, XIX. 31)


Um dos pontos essenciais de Odisseia é a história de Helena, do seu abandono do rei Menelau e da sua aventura com Páris, no fundo a base para a guerra de Tróia. É um episódio que nos faz pensar sobre as questões da moralidade, dos valores de uma sociedade e neste caso da abordagem dada por Homero. Seria fácil condenar o episódio à luz da moral contemporânea, ou pensar na abordagem de Homero como uma visão primitiva das ações humanas. Antes de mais importa ver a Odisseia como uma abordagem de grande sensibilidade da experiência acontecida. A leitura da Odisseia, o encontro com o mundo de Homero dá-nos respostas para a decadência cultural em que vivemos, o desencanto pelo mundo.

Tendemos no mundo de hoje a fazer grandes análises com base em estados de espírito de natureza privada, nas crenças interiores que nos fundamentam. No mundo de Homero os homens conduzem-se por ações públicas que podiam ser partilhadas. Essa noção pública da ação conduzia-os à realização de algo heróico e apaixonado. Os deuses gregos são os suportes para a criação pública destes estados de espírito. São eles que dão "sintonia", substância à sua ação. Neste sentido os valores do sagrado são vividos com um sentido prático, existencial da vida. Os gregos podem ainda salvar-nos do desencanto e do niilismo que nos domina.

No mundo de Homero existe uma palavra essencial, um conceito sagrado de vida, "aretê". Ela não nos conduz nem à ideia cristã de humildade e amor, nem ao valor romano do dever estóico de cumprir um dever. Em Homero ela é a formulação de um sentido de gratidão, mas sobretudo o encantamento do real. A nobreza do que combate, o herói dedicado e forte excede os nossos padrões morais. Se Helena não teve para nós uma abordagem razoável é porque nós não compreendemos o politeísmo de Homero. As ações organizam-se com deuses concretos. Helena com Afrodite, Aquiles com Ares e Ulisses com Atena.

Os gregos do mundo de Homero sabiam da grande necessidade das divindades, pois pensavam que suas ações não estavam inteiramente dependes de si próprios. -"Todos precisamos de deuses imortais", diz Pisístrato na Odisseia, o que significa que as ações comuns do dia, como viver o quotidiano eram uma dádiva dos deuses. O caso de Ájax que morrre afogado após ter conseguido escapar revela esta ideia grega de que quando algo favorável nos acontece devemos expressar gratidão. 

Esta qualidade é expressa como conceito de vida, como condição para uma existência que se possa considerar bem vivida. A distração de Ájax revela como para os gregos o sentimento do sagrado é essencial para os compreender. É essa a função dos deuses gregos, dar aos humanos o que está para lá da sua condição. A bem aventurança era para os homens do mundo de Homero uma dedicação própria a cada um deles, não era um valor abstrato. O mundo moderno desconhece esta abordagem.

O mundo contemporâneo herdou muito da ideia romana baseada no estoicismo e uma reserva na sorte. Daqui ao niilismo que vivemos é um passo. A diferença entre a Grécia e Roma é que os praticavam o valor da sorte não podiam reconhecer a gratidão pelo que acontecia. Daqui decorre um afastamento interior da vida, o aprofundamento do valor da existência. No mundo romano não há encantamento, como não o há nos tempos contemporâneos. 

A lição do mundo de Homero é esta dedicação a um real que nos pode fascinar e do qual nos podemos sentir gratos. O fascínio da existência repousa na construção de um "areté" que só se pode encontrar em substância de um reconhecimento da maravilha da própria vida. O importante na cultura grega não era a quem essa gratidão era dirigida, mas apenas que o era. Aí reside todo o valor do sagrado no mundo de Homero. O mundo contemporâneo não sabe descobrir coisas para se admirar, nem sentir valor de gratidão pelo que descobre e vive quotidianamente. O que os Gregos nos ensinam é que não existe na ação humana o valor omnipresente em tudo o que realizamos, pois existem ações não dependentes de nós. 

Porque o mundo contemporâneo se alicerça na ideia de que as ações humanas revelam comportamentos em que apenas intervém o humano facilmente o niilismo construiu ideias e sistemas filosóficos apenas visando essa centralidade do homem. No mundo de Homero o valor da experiência exterior, a abertura ao mundo supera a exclusiva responsabilidade humana pelo que acontece. A abertura aos outros, essa iluminação que conseguimos quando construímos com os outros, quase como uma força exterior é a formulação de um sagrado que nos aproxima da ideia de Homero. O panteão de divindades gregas funcionava para essa sintonia diversificada que era a vida e o que se sentia com ela. Por isso os sonhos em Homero são algo partilhável, do domínio público e não privado como na sociedade contemporânea. 

Voltando ao início como vê Homero a fuga de Helena? Nós com o nosso código moral apenas o poderíamos condenar. No mundo de Homero o belo tem uma dimensão de sagrado. Beleza das pessoas, como Helena mas do real que a acompanha. A beleza não é reduzível a um valor moral, ela aconteceu por ela em si, pelos seus gestos e pelo que anima à sua volta. A escolha de Helena está assegurada pela sintonia com uma divindade. Escolha que se pode lamentar, mas que reúne em si o espanto grego com que futuros leitores ouvirão para se conhecer melhor. É ainda na Odisseia que ouvimos "foram os deuses os responsáveis: fiaram a destruição para os homens, para que também os vindouros tivessem tema para os seus cantos" (Homero, Odisseia VIII, 579-80). 

Luís Campos (Biblioteca)

Fontes:
Van Doren, Charles. (2007). Breve história do saber. Lisboa: Caderno. 
Dreyfus, Hubert & Kelly, Sean Dorrance. (2011). All Things Shining. New York: Simon & Schuster, Inc.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Para ires lendo... e pensando...(II)

"Como a razão nada exige que seja contrário à natureza, exige, por consequência, que cada qual se ame a si mesmo, busque a sua própria utilidade - o que realmente lhe seja útil -, apeteça tudo aquilo que conduz realmente o homem a uma perfeição maior e, em termos absolutos, que cada qual se esforce quanto estiver na sua mão por conservar o seu ser. (...) 

E assim, nada mais do que o homem é útil ao homem; quero dizer que nada podem os homens desejar que seja melhor para a conservação do seu ser do que concordarem todos em todas as coisas, de maneira a que as almas de todos formem como que uma só alma, e os seus corpos como que um só corpo, esforçando-se todos à uma, tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e buscando todos ao mesmo tempo a utilidade comum. 

Daqui se seguindo que os homens que se guiam pela razão, quer dizer, os homens que buscam a sua utilidade sob a condução da razão, não apetecem para si nada que não desejem para os demais homens, e por isso, são justos, dignos de confiança e honestos". (Espinosa, Ética). 

Podemos estudar muitos assuntos e não podendo estudar todos poderemos alguns não os aprender. Podemos viver sem saber nada sobre astrofísica ou o funcionamento biológico da natureza.  Não podemos viver sem aqueles assuntos que estão muito dependentes da vida que construímos. Não podemos viver sem conhecer os riscos que ameaçam a nossa relação com os outros. Nas nossas escolhas há modos de viver que não nos são úteis.  Precisamos de saber o que pode ser bom nas nossas vidas e o que nos pode prejudicar. Sendo que a vida que cada um tem é uma escolha do que pretende ser, temos de saber construir a dimensão de um conceito essencial - a liberdade. A nossa liberdade é condicionada pelos elementos culturais, pelas formas e usos da linguagem, pelo conjunto de hábitos sociais. Temos na liberdade a opção de escolher um caminho. Mas como o faremos? Com que graus de escolha?

Acontecem-nos coisas que não controlamos. O local onde nascemos, os dados culturais e sociais onde aprendemos a linguagem com que medimos o mundo. Mas temos alternativas. Podemos dar as respostas que melhor nos convém. Temos a possibilidade de ensaiar caminhos, de ver mais alto, de procurar respostas. Se estamos dependentes da nossa vontade, ela para cumprir a nossa essência de liberdade necessita de duas condições. Justamente o conhecimento do mundo e de nós próprios.

Entre o que nos limita e o mundo há as nossas convições, a nossa expressão de liberdade. Na escolha que fazemos sobre o que é mais agradável para a nossa vida fazemos escolhas, procuramos o que se designa a arte de viver. Esta arte de viver é de um modo mais prático o que podemos chamar Ética. 

(A partir de algumas ideias de Fernando Savater, Ética para um Jovem).

Luís Campos (Biblioteca)