quinta-feira, 30 de março de 2017

Na diversidade

Existe uma capacidade nem sempre muito valorizada que é a de observar para algo aparentemente pouco motivador, ou interessante que é olhar para uma mosca, ou um mosquito. A aprendizagem dessa observação pode ser muito enriquecedora. Essa capacidade de observação a realidades tão pequenas e encontrar-lhes qualidades é incomum e mostra a capacidade de um observador sair do lugar onde está, não se manter fixo num ponto de observação. Não é uma procura do lado positivo das coisas, mas simplesmente a descoberta de uma nova visão, que tanto poderá encontrar qualidades como defeitos.

É a diversidade de ângulos que nos faz mais sábios, mais compassivos e nos garante, ao mesmo tempo, a liberdade. Assim, a ideia demasiado divulgada de que devemos perseguir o otimismo custe o que custar é, além de redutora, uma fábrica de tolos. Monet dizia que, em toda a sua vida, nunca vira nada feio. Percebo a ideia, mas há coisas que devemos execrar pela nossa saúde psicológica e ética. Para mim, não faz sentido que um pôr-do-sol continue bonito enquanto se dá um genocídio.

Olhar para o que é desprezível ou insignificante com a devida concentração permite que o extraordinário se aproprie daquilo que vemos. Não resultará necessariamente em beleza, como achava Monet: desta visão, ao debruçarmo-nos sobre pequenas coisas, sobre a banalidade, podem surgir monstros, bem como flores de lótus. Sobretudo, fará com que a realidade se rasgue, deixando vislumbrar através do lugar-comum uma nova paisagem.

Ver de maneira diferente é uma violência contra nós mesmos, uma maneira de mudarmos, de perdermos um pouco daquilo que nos identifica. Erich Fromm dizia que a grande tarefa de um ser humano é dar à luz a si próprio. (...) Mudar de posição, de opinião, de princípios, ou até de caráter é um processo doloroso e que exige um esforço do sujeito, um amor pela liberdade, pela necessidade de uma visão maior, mais ampla, mais universal.

Toda a viagem tem alguma coisa de doloroso, como um parto. Travel e travailtêm a mesma raiz: a viagem era muitas vezes a peregrinação enquanto purga do pecador ou o exílio. Ao deslocar o nosso ponto de vista, é necessário sacrificar alguma coisa, largar a pele, a carapaça ou o muro que construímos diligentemente durante anos e que acarinhamos como aquilo que verdadeiramente nos define, mas que pode não passar de uma crosta que impede a vida de fluir e evoluir.

É por essa razão que ver o mundo de um novo ângulo nos é tão difícil. Vamos, ao longo da vida, cimentando as nossas certezas, vamos abrandando o passo até que de repente deixamos de ter pés para passar a ter raízes. Solidificamos a nossa mundividência com betão armado, fossilizamos o que nos rodeia com um  olhar de Medusa, e assumimos que essa perspetiva é a verdade.

E se a fizermos absoluta, passamos imediatamente a considerar como falsas todas as outras, começando rapidamente a acender fogueiras para queimar livros e pessoas. Para o detentor da verdade, passará então a ser justo combater e destruir todas as vozes discordantes, todas as opiniões contrárias, todas as dúvidas, pois estas não passam de torpes mentiras. Todos os autoritarismos, todos os déspotas, todos os genocídios nascem de um ponto fixo e absoluto: nascem da verdade.

Afonso Cruz, "Elogio da mosca", in Jornal de Letras, 29.03 a 11.04.17 (texto adaptado)

segunda-feira, 27 de março de 2017

Para nos tornarmos humanidade…

Havia um pensador brasileiro, que faleceu há alguns anos, o Milton Santos, que dizia há alguns anos, que dizia que a humanidade ainda não começou. E eu agarrei muito essa ideia dele. Porque é muito mais esperançoso acharmos que a humanidade é um projeto que está adiado, do que achar que a humanidade é isto. Por isso, eu prefiro acreditar… Eu penso assim: eu vejo a humanidade como uma construção cultural e intelectual, e não exatamente… um animal que subitamente se mostra mais inteligente. A humanidade, ela difere deste animal. 

E, por isso, eu poderia estar aqui sentado exatamente com este aspeto e não ser, para mim, não ser um homem, não ser gente. E este é o grande equívoco que pode retirar a esperança, digamos assim a uma grande parte das pessoas, que é o julgarem que ao nascermos assim, e vestirmos uns casacos azuis bonitos, nos confere imediatamente… a condição de humano. A humanidade é uma construção, de coletivo, de proteção de coletivo, que difere do bicho que somos. E, por isso, se você quiser, imagine que o corpo é uma espécie de tela. E nós vamos passar nela um filme. A humanidade é esse filme. Não é a tela. E, por isso, você projeta nessa tela, eventualmente um bom filme ou um mau filme. 

A Construção em que eu acredito, é aquilo que eu acho que justifica até a defesa da espécie, porque nós somos muito virados para a espécie. Nós achamos que ser gente é uma maravilha, ser galinha é uma coisa destituída de dignidade. Mas por quê? Só porque nós podemos achar alguma coisa, a galinha eventualmente não se expressa… Por mais ridículo que seja o bicho, se pudesse se expressar talvez tivesse alguma coisa para dizer que nos surpreendesse. Mas tudo bem, eu até como animais, adorava não comer, mas como animais. 

A questão é que eu acho, seguramente, aquilo que nos justifica como dignidade, digamos assim, como gente digna, é exatamente a propensão para o coletivo. E, por isso, se nós perdermos a lógica de proteção coletiva, porque eu acho que nós somos eminentemente plurais… Ninguém é apenas individualmente alguém. Toda a nossa individualidade é uma espécie de reduto de coletivo. Porque você não nasce capaz de nada, você nasce, procede, porque alguém, por algum motivo, cuidou de você. 

E por isso eu acho que em última análise, você, aquilo que você é, depende do que os outros também são. E por isso a sua identidade vai ser sempre uma questão coletiva, nunca vai ser uma questão absolutamente individual. Quando você acha que chegou a um estado absolutamente maduro de ser quem é, isso significa eventualmente que você atingiu um equilíbrio com os outros, porque essa é a única maturidade. Se você não estiver em equilíbrio com os outros, você deixou de ser gente.

Valter Hugo Mãe, “Para nos tornarmos humanidade”, in Fronteiras do Pensamento. São Paulo. 2016. Imagem: A criação de Adão, Miguel Ângelo, 1508-1512, Capela Sistina, Roma.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Conteúdos na rede - A representação do belo - [1400/1500] (6)

Na construção e representação do belo, a pintura entre Quatrocentos e Quinhentos trouxe uma evolução à ideia já existente da admiração da beleza. Esta deixou de aparecer como uma representação das partes admiradas para se constituir na Beleza supra-sensível. Essa beleza, ou esse sentido do belo atingiria uma dimensão mais elevada. Essa natureza do belo estaria presente nas figuras humanas, mas também na própria natureza. Uma das figuras que ajudou a definir essa representação do belo, essa beleza supra-sensível foi Marsílio Ficino, uma das figuras do neoplatonismo desenvolvido em Florença, na 2ª metade do século XV.
Fonte: História da Beleza. (2005). Umberto Eco. Lisboa:Difel.
Imagem – Sandro Boticelli, Alegoria da Primavera, (pormenor),c. 1478, Florença, Uffizi.

A pintura entre Quatrocentos e Quinhentos propõe uma nova concepção de beleza. Tenta ultrapassar a concepção de Beleza definida como proporção e harmonia e tenta juntar a sabedoria dos clássicos, reordená-la dentro de um sistema inteligível que seja portador do simbólico e harmonizá-la com o imaginário cristão. É uma concepção do Belo assente num grande valor simbólico. 
Fonte: História da Beleza. (2005). Umberto Eco. Lisboa:Difel.
Imagem – Sandro Boticelli, Alegoria da Primavera, (pormenor),c. 1478, Florença, Uffizi.

A Beleza supra-sensível:
Na verdade, não há beleza mais autêntica do que a sabedoria que encontramos e amamos em qualquer indivíduo, prescindindo do seu rosto que pode ser feio e, não olhando precisamente para a sua aparência, procuramos a sua beleza interior. Mas, se ela não te comove a ponto de chamares belo a esse homem, nem sequer olhando para o teu íntimo poderás perceber-te como coisa bela. Nesta atitude, em vão a procurarás, porque estarias a procurá-la numa coisa feia e não pura. Por isso, estes nossos discursos não se dirigem a todos; mas lembra-te deles, se também tu te consideras belo”.
Plotino (século III), Enéades, V, 8
Imagem – Ticiano, Vênus de Urbino, 1538, Galeria de Uffizi, Florença.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Conteúdos na rede - A representação do belo - [1400/1500] (5)

A beleza mágica da pintura entre Quatrocentos e Quinhentos passou pelas ideias de modernismo de Alberti e pelo seu Tratado de Pintura, onde surge uma teoria perspectivista da arte de olhar.
Diz Alberti, “a pintura, não será outra coisa que a intersecção da pirâmide visual segundo uma distância dada, estando o centro da visão colocado a luzes dispostas numa certa superfície representada com arte por meio das linhas e das cores”.
Alberti marcará o Renascimento e dará às ideias da cultura clássica um novo alvorecer. Com ele floresce essa luz criada pela magia da arte europeia entre Quatrocentos e Quinhentos, com destaque para a pintura, onde o quadro é uma janela aberta. Dentro da janela o espaço multiplica os planos, onde a organização se faz segundo uma sucessão de aprofundamentos que se integram e se modelam pela luz e pela cor. Nesta pintura que se desenvolve entre Quatrocentos e Quinhentos o papel da pintura flamenga e da pintura a óleo são indissociáveis neste movimento. É esse tratamento a óleo que permite construir um efeito de magia no sentido em que as figuras parecem envolvidas e mergulhadas numa luminosidade que excede o natural.
Fonte: História da Beleza. (2005). Umberto Eco. Lisboa:Difel.

#Abelezaentrequatrocentosequinhentos
#Obelocomorepresentação

Imagem – Jan Van Eyck, Virgem do chanceler Rolin, c. 1435, Museu do Louvre, Paris

Conteúdos na rede - A representação do belo - [1400/1500] (4)

A beleza mágica da pintura entre Quatrocentos e Quinhentos foi construída primeiramente como um diálogo entre a imitação da natureza e a procura de uma perfeição inventiva. Para este enobrecimento do belo como recriação da natureza deveu muito a dois tipos de invenções. 
A primeira foi o aperfeiçoamento das técnicas de representação da perspectiva desenvolvido por Brunelleschi Imitação e invenção. Reprodução da realidade observada e renovação da mesma pela visão do observador. Filippo Brunelleschi foi arquitecto, escultor renascentista e concluiu a cúpula da catedral de Santa Maria del Fiore em Florença.

#Abelezaentrequatrocentosequinhentos
#Obelocomorepresentação

Imagem – Cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, Forença, séc. XV.

Conteúdos na rede - A representação do belo - [1400/1500] (3)

Ainda com o jogo de dualidade entre a imitação e a inventividade do período entre quatrocentos e quinhentos. E ainda as palavras de um mestre, alguém que encontrou a luz, espelhada numa forma de criação.
“Queto que os jovens […] aprendam a desenhar bem os contornos das superfícies e se exercitem como nos primeiros elementos da pintura; depois, aprendam a juntar as superfícies e aprendam cada forma distinta de cada membro, e mandem para a mente qual é a diferença que existe em cada membro. […] E, assim, o pintor examina todas as coisas que, estando num membro a mais ou a menos, os faz diferentes. E note ainda quando vemos que os nossos membros infantis são redondos, quase feitos ao torno e delicados; na idade mais provecta são ásperos e angulosos. Assim, o pintor estudioso conhecerá todas estas coisas a partir da natureza e examiná-las-á consigo mesmo muito assiduamente, de modo que cada um esteja, e continuamente estará, desperto com os olhos e com a mente nesta investigação e obra.”
Leon Battista Alberti, Da pintura, 1435

#Abelezaentrequatrocentosequinhentos
#Obelocomorepresentação

Imagem –Domenico Ghirlandaio, Retrato de mulher jovem, C. 1485, Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Conteúdos na rede - A representação do belo - [1400/1500] (2)

O poder do pintor:
O pintor é dono de todas as coisas que podem cair no pensamento humano; porque, se ele desejar ver belezas que o apaixonem, será senhor de gerá-las e, se quiser ver coisas monstruosas que espantem ou que sejam histriónicas ou ridículas ou verdadeiramente lastimáveis, ele é seu senhor e criador. E, se quiser gerar sítios desertos, lugares sombrios ou frescos nos tempos quentes, figurá-los-á e também lugares quentes nos tempos frios. Se quiser vales, o mesmo; se quiser dos altos cumes dos montes descobrir uma grande campina e se quiser depois ver o horizonte do mar, será capaz disso; e, assim também se, dos fundos dos vales, quiser ver os altos montes, ou dos altos montes, os fundos vales e as praias. E, com efeito, o que está no universo  por essência, presença ou imaginação, ele o tem primeiro na mente e, depois, nas mãos que são de tão grande excelência que ao mesmo tempo criam uma proporcionada harmonia num só olhar como as coisas fazem.
Leonardo da Vinci, Tratado de pintura, VI, 1498

Imagem - Leonardo da Vinci, A viagem dos rochedos, C. 1482, Paris, Museu do Louvre

Conteúdos na rede - A representação do belo - [1400/1500] (1)

Entre quatrocentos e quinhentos a beleza e a criação artística criaram algo que poderíamos chamar de mágico. A descoberta da perspectiva na Itália, ou a difusão de novas técnicas pictórias, ou a influência das ideias de Platão alteraram a representação do belo. Não é exagerado que a luz como algo a desfrutar foi por esse conjunto de artistas dado ou revelado ao futuro. Nesses dois séculos a representação do mundo visível era o meio para o conhecimento de uma realidade que estava organizada segundo regras coerentes. O artista era assim criador de uma novidade e ainda assim imitador da natureza. Na imitação estuda o que parece fiel à natureza, na criação constrói a inovação técnica e não realiza a repetição das formas.

As páginas de conteúdos digitais têm agregado no Facebook e no Twitter, uma etiqueta que aqui se irá dando conta de um modo progressivo, justamente:
Imagem: Sandro Boticelli, Senhora de Magnificat, C. 1482, Florença, Uffizi.