segunda-feira, 14 de março de 2016

Para ires lendo... e pensando...(VII)

 
[C]omo nas democracias o povo parece mais ou menos fazer o que quer, colocou-se a liberdade nestes tipos de governo; e confundiu-se o poder do povo com a liberdade do povo.
  É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste em fazer o que se quer. Num Estado, isto é, numa sociedade onde há leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer, e a não ser forçado a fazer o que não se deve querer. 
  Tem de se ter em mente o que é a independência e o que é a liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, já não haveria liberdade porque os outros também teriam esse mesmo direito.
   A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas nem sempre ela existe nos Estados moderados; só existe quando o poder não é abusado; mas é uma experiência eterna que todo o homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até encontrar limites. Quem diria! Até a virtude precisa de limites!
   Para que se não possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder. Uma constituição pode ser tal que ninguém será forçado a fazer coisas que a lei não obriga, e a não fazer as que a lei permite.

Montesquieu. (2011). O Espírito das Leis. Lisboa: Edições 70. Tradução e notas: Miguel Morgado. Livro XI - Caps. II, III e IV, pp. 302-303.

terça-feira, 8 de março de 2016

Sociedade e valores....

A nossa sociedade está numa crise de valores?
É costume ouvir-se nos meios de comunicação e nos locais de discussão e de encontros sociais que a nossa sociedade se encontra numa crise de valores. Será isto verdade? Para o determinar, há que abordar questões de contextualização social e história complexas.
Primeiro, é preciso ter clarificado o conceito de “crise de valores”. Trata-se de uma quebra com a ordem hierárquica dos valores, ou com a percepção da mesma pela população, anterior à época em estudo. Mudando a ordem hierárquica dos valores de uma sociedade em relação à sua ordem anterior ou em relação à ordem percepcionada anteriormente pelas pessoas, de forma negativa, estamos perante uma crise de valores.
Apliquemos então esta definição à actualidade. Considera-se que nos encontramos, na escala do tempo, a seguir ao século da mudança, o vigésimo. Neste sentido, foram redefinidos e rebaixados os valores familiares tradicionais, houve uma completa redefinição e aumento da importância dos valores estéticos, a ciência e a tecnologia impulsionaram a subida dos valores lógicos na hierarquia de valores, enquanto os valores úteis atingiram o topo, à custa da desvalorização dos valores ético-morais e dos religiosos. Quem tiver uma apreciação negativa destas mudanças pode considerá-las, no seu conjunto, uma crise de valores.
Contudo, a subida ao poder dos valores úteis não ocorreu de facto. Já se encontrava instalada nas mentes das classes dirigentes (políticos, burgueses, nobres, alguns membros do clero), os verdadeiros detentores do poder, desde o início do Renascimento, senão da Alta Idade Média. O que mudou foi a sua instalação nas mentes das classes mais baixas, para estimular o consumo. Isto foi conseguido através da publicidade e da facilitação do consumo. Assim, a adquirida importância dos valores úteis não foi o resultado de uma mudança radical na hierarquização dos valores da sociedade, já que as classes dirigentes já pensavam dessa maneira. Esta situação pode ser considerada negativa, visto que transforma o ser humano numa máquina de consumo desenfreado e irracional: a felicidade depende do valor líquido dos bens, e não da realização enquanto ser humano.
Outra situação com possível conotação negativa é a subida na hierarquia dos valores estéticos. Enquanto a sua redefinição é um produto do normal curso da evolução da criação artística, na arte, o aumento da sua importância leva-nos a considerar a aparência antes de tentar chegar à essência. Apenas o texto e apenas o som não parecem satisfazer ninguém. É precisa a imagem, e apenas o que estiver incluído numa margem específica de atributos é considerado belo e tolerável. Impingem-nos um ideal de beleza que devemos tentar alcançar a todo o custo, mesmo que o caminho passe pela compra de inúmeros produtos supérfluos.
Testemunhamos ainda a valorização da ciência e dos valores lógicos. Seguir um caminho empírico em que são necessárias provas e lógica para justificar a escolha dos nossos cursos de acção tem os seus atributos positivos, mas será que o Homem foi feito para considerar apenas o verdadeiro e o falso e para agir segundo padrões de probabilidade de consequências? Não. Se fosse, seria um computador. Os cálculos e estatísticas fazem-nos esquecer que cada pessoa é singular na sua existência.
Os valores religiosos também chegaram a um papel menor nas sociedades. Por um lado, o indivíduo não sujeito à religião organizada é mais capaz de pensar por si mesmo mas, pelo outro, deixa de ser educado acerca de alguns valores que estão na base de, por exemplo, outros valores ético-morais importantes.
O que eu penso que marcou, contudo, acima de tudo o resto, o século que passou, foi a queda dos valores familiares tradicionais e, primeiro, a valorização e, depois, a desvalorização dos valores ético-morais. Grande parte do mundo ocidental largou o seu conceito de família antigo e passou a incluir nele os agregados familiares menos comuns, como os homossexuais e os monoparentais. Ocorreu a emancipação da mulher e a revolução sexual. Pela mesma altura, surgiram desejos de igualdade social generalizados para as populações oprimidas, sustentadas por valores ético-morais de justiça, que juntaram autênticas multidões em razão de uma causa comum. Infelizmente, isto deu lugar ao individualismo, com provável base na valorização dos valores úteis. Esta nova forma de pensar provocou e expandiu problemas sérios, tais como a pobreza, a injustiça social e a degradação do ambiente.
Estas mudanças não são inéditas à Humanidade. No seu dinamismo e adaptabilidade, a sociedade está em constante mutação. Para as antigas gerações e até para alguns membros das mais novas, estaremos num constante estado de “crise de valores” devido ao carácter subjectivo dos mesmos. O que é importante é conservar os valores que trazem o bem-comum – apesar de este também ter um carácter subjectivo – e educar os novos para que possam definir os seus próprios valores de maneira consciente e responsável.

José Soares Trindade Nunes dos Santos, nº 12, 10º C1

segunda-feira, 7 de março de 2016

Para ires lendo... e pensando...(VI)

O que é afinal uma maioria considerada colectivamente, senão um indivíduo com opiniões e interesses frequentemente contrários a outro indivíduo, a quem chamamos minoria? Ora, se se admite que um homem revestido de todo o poder pode abusar dele contra os seus adversários, porque não se admitirá o mesmo para uma maioria? Os homens mudarão de carácter uma vez reunidos? Passarão a ser mais pacientes perante os obstáculos ao tornarem-se mais fortes? Quanto a mim, não acredito; e o poder de tudo fazer, que recuso a um só dos meus semelhantes individualmente, não o concederei nunca a muitos deles.

A omnipotência, considerada e si mesma, parece-me uma coisa má e perigosa. O seu exercício parece-me exceder as forças de qualquer homem; apenas concebo Deus Todo-Poderoso sem que disso decorra qualquer perigo, porque a Sua sabedoria e a Sua justiça igualam sempre o Seu poder. Por conseguinte, não há na Terra autoridade que seja tão respeitável em si mesma ou que esteja investida de um direito tão sagrado que devamos deixá-la agir sem controlo e dominar sem obstáculos. Portanto, quando vejo conceder a um qualquer poder o direito e a faculdade de tudo fazer, chame-se ele povo ou rei, democracia ou aristocracia, quer se exerça numa monarquia ou numa república, digo: lá está o germe da tirania; e procuro viver sob outras leis.

Imaginai... um corpo legislativo composto de maneira a representar a maioria mas sem ser necessariamente escravo das suas paixões; um poder executivo que dispusesse de uma força própria e um poder judicial independente dos outros dois poderes; teríeis ainda um governo democrático, mas quase deixaria de haver a possibilidade de exist~encia de uma tirania.

Alexis de Tocquelive. (2001). Da Democracia na América. Cascais: principa, Vol I: Segunda parte - Cap. VII, pp. 300-302