quinta-feira, 26 de maio de 2016

Para ires lendo... e pensando...(XI)

[O]s livros não são coisas absolutamente mortas, encerrando em si uma vida em potência que os torna tão activos quanto o espírito que os produziu. Mais ainda, os livros conservam, como num frasco, o mais puro extracto e eficácia do intelecto vivo que os gerou. Sei que estão tão vivos e tão vigorosamente produtivos como os dentes daquele dragão da fábula e que, disseminados aqui e ali, podem fazer surgir homens armados.
Mas isto significa também que, se não se usar cautela, matar um bom livro é quase o mesmo que matar uma pessoa. Quem mata um homem mata uma criatura racional feita à imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro mata a própria razão, mata a imagem de Deus, como esta estivesse nos olhos.

Muitos homens são um peso para este mundo; um bom livro, porém, é a seiva preciosa de um espírito superior, embalsamado e deliberadamente preservado para uma existência que ultrapassa a vida. É verdade que nenhuma época pode desenvolver uma vida, o que nem sempre representará grande perda; e as revoluções do tempo não reparam muitas vezes a perda de uma verdade rejeitadas, por falta da qual nações inteiras sofrem as piores consequências.

Deveríamos ter, por conseguinte, cuidado com a perseguição que movemos contra as obras vivas de homens públicos, com o modo como desperdiçamos essa experiência humana de vida preservada e armazenada nos livros, pois bem vemos que se pode cometer assim um espécie de assassínio, por vezes um martírio,e, se o alargarmos a todas as obras impressas, um autêntico massacre - em que a execução não termina na chacina de uma vida elementar, mas atinge aquela quintissência etérea que é o sopro da própria razão, destruindo não apenas uma vida, mas uma imortalidade.

John Milton. (2010). Aeropagítica: Discurso sobre a liberdade de expressão. Trad.: de Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina e Ad Astra et Ultra, pp. 32-33. 

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