quinta-feira, 12 de maio de 2016

Para ires lendo... e pensando...(IX)

Não é preciso grande arte, eloquência muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem tolerar-se uns aos outros.Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos para todos os homens como irmãos. O quê? O turco, meu irmão? O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida. Não somos todos filhos do mesmo pai, criatura do mesmo Deus?
Não é apenas grande crueldade perseguir nesta vida os que não pensam como nós, mas não sei se não há demasiada ousadia em pronunciar-lhes a condenação eterna. Quer-me parecer que não pertence a átomos de um momento, que é o que nós somos, anteciparem-se assim às decisões do criador. Estou muito longe de combater a sentença que diz: "Fora da Igreja não há salvação"; respeito-a, bem como tudo o que ela ensina, mas, em verdade, conheceremos nós todas as vias de Deus e toda a amplitude das suas misericórdias? Não nos será permitido ter esperança nele, tanto quanto ter temor por ele? Não bastará ser fiel À Igreja? Será necessário que cada particular usurpe os direitos da Divindade e decida, antes dela, a sorte eterna de todos os homens?
Oh, sectários de um Deus clemente! Se tivésseis um coração cruel; se, ao adorar aquele cuja inteira lei consistia nestas palavras, "amai a Deus e ao próximo", tivésseis amontoado sofismas e disputas incompreensíveis sobre essa lei dura e sagrada; se tivésseis acendido a discórdia, umas vezes por uma palavra nova, outras por uma única letra do alfabeto; se tivésseis associado penas eternas à omissão de algumas palavras, de algumas cerimónias que outros povos não podiam conhecer; se assim fosse, dir-vos-ia, derramando lágrimas sobre o género humano: "Transportai-vos comigo até ao dia em que todos os homens serão julgados em que Deus dará a cada um segundo as suas obras.

Voltaire. (2015). Tratado sobre a Tolerância. Lisboa: Relógio D´Água, Cap. XXII, págs. 351 e 354-55.

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