segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O mundo de Homero

"Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:
Não digas nada. Não penses agora. Não faças perguntas.
Assim actuam os deuses, que o Olimpo detêm". (Homero, Odisseia, XIX. 31)


Um dos pontos essenciais de Odisseia é a história de Helena, do seu abandono do rei Menelau e da sua aventura com Páris, no fundo a base para a guerra de Tróia. É um episódio que nos faz pensar sobre as questões da moralidade, dos valores de uma sociedade e neste caso da abordagem dada por Homero. Seria fácil condenar o episódio à luz da moral contemporânea, ou pensar na abordagem de Homero como uma visão primitiva das ações humanas. Antes de mais importa ver a Odisseia como uma abordagem de grande sensibilidade da experiência acontecida. A leitura da Odisseia, o encontro com o mundo de Homero dá-nos respostas para a decadência cultural em que vivemos, o desencanto pelo mundo.

Tendemos no mundo de hoje a fazer grandes análises com base em estados de espírito de natureza privada, nas crenças interiores que nos fundamentam. No mundo de Homero os homens conduzem-se por ações públicas que podiam ser partilhadas. Essa noção pública da ação conduzia-os à realização de algo heróico e apaixonado. Os deuses gregos são os suportes para a criação pública destes estados de espírito. São eles que dão "sintonia", substância à sua ação. Neste sentido os valores do sagrado são vividos com um sentido prático, existencial da vida. Os gregos podem ainda salvar-nos do desencanto e do niilismo que nos domina.

No mundo de Homero existe uma palavra essencial, um conceito sagrado de vida, "aretê". Ela não nos conduz nem à ideia cristã de humildade e amor, nem ao valor romano do dever estóico de cumprir um dever. Em Homero ela é a formulação de um sentido de gratidão, mas sobretudo o encantamento do real. A nobreza do que combate, o herói dedicado e forte excede os nossos padrões morais. Se Helena não teve para nós uma abordagem razoável é porque nós não compreendemos o politeísmo de Homero. As ações organizam-se com deuses concretos. Helena com Afrodite, Aquiles com Ares e Ulisses com Atena.

Os gregos do mundo de Homero sabiam da grande necessidade das divindades, pois pensavam que suas ações não estavam inteiramente dependes de si próprios. -"Todos precisamos de deuses imortais", diz Pisístrato na Odisseia, o que significa que as ações comuns do dia, como viver o quotidiano eram uma dádiva dos deuses. O caso de Ájax que morrre afogado após ter conseguido escapar revela esta ideia grega de que quando algo favorável nos acontece devemos expressar gratidão. 

Esta qualidade é expressa como conceito de vida, como condição para uma existência que se possa considerar bem vivida. A distração de Ájax revela como para os gregos o sentimento do sagrado é essencial para os compreender. É essa a função dos deuses gregos, dar aos humanos o que está para lá da sua condição. A bem aventurança era para os homens do mundo de Homero uma dedicação própria a cada um deles, não era um valor abstrato. O mundo moderno desconhece esta abordagem.

O mundo contemporâneo herdou muito da ideia romana baseada no estoicismo e uma reserva na sorte. Daqui ao niilismo que vivemos é um passo. A diferença entre a Grécia e Roma é que os praticavam o valor da sorte não podiam reconhecer a gratidão pelo que acontecia. Daqui decorre um afastamento interior da vida, o aprofundamento do valor da existência. No mundo romano não há encantamento, como não o há nos tempos contemporâneos. 

A lição do mundo de Homero é esta dedicação a um real que nos pode fascinar e do qual nos podemos sentir gratos. O fascínio da existência repousa na construção de um "areté" que só se pode encontrar em substância de um reconhecimento da maravilha da própria vida. O importante na cultura grega não era a quem essa gratidão era dirigida, mas apenas que o era. Aí reside todo o valor do sagrado no mundo de Homero. O mundo contemporâneo não sabe descobrir coisas para se admirar, nem sentir valor de gratidão pelo que descobre e vive quotidianamente. O que os Gregos nos ensinam é que não existe na ação humana o valor omnipresente em tudo o que realizamos, pois existem ações não dependentes de nós. 

Porque o mundo contemporâneo se alicerça na ideia de que as ações humanas revelam comportamentos em que apenas intervém o humano facilmente o niilismo construiu ideias e sistemas filosóficos apenas visando essa centralidade do homem. No mundo de Homero o valor da experiência exterior, a abertura ao mundo supera a exclusiva responsabilidade humana pelo que acontece. A abertura aos outros, essa iluminação que conseguimos quando construímos com os outros, quase como uma força exterior é a formulação de um sagrado que nos aproxima da ideia de Homero. O panteão de divindades gregas funcionava para essa sintonia diversificada que era a vida e o que se sentia com ela. Por isso os sonhos em Homero são algo partilhável, do domínio público e não privado como na sociedade contemporânea. 

Voltando ao início como vê Homero a fuga de Helena? Nós com o nosso código moral apenas o poderíamos condenar. No mundo de Homero o belo tem uma dimensão de sagrado. Beleza das pessoas, como Helena mas do real que a acompanha. A beleza não é reduzível a um valor moral, ela aconteceu por ela em si, pelos seus gestos e pelo que anima à sua volta. A escolha de Helena está assegurada pela sintonia com uma divindade. Escolha que se pode lamentar, mas que reúne em si o espanto grego com que futuros leitores ouvirão para se conhecer melhor. É ainda na Odisseia que ouvimos "foram os deuses os responsáveis: fiaram a destruição para os homens, para que também os vindouros tivessem tema para os seus cantos" (Homero, Odisseia VIII, 579-80). 

Luís Campos (Biblioteca)

Fontes:
Van Doren, Charles. (2007). Breve história do saber. Lisboa: Caderno. 
Dreyfus, Hubert & Kelly, Sean Dorrance. (2011). All Things Shining. New York: Simon & Schuster, Inc.

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